Talvez você já tenha visto na mídia a peça de propaganda voltada ao Dia dos Namorados da empresa O Boticário anunciando Egeo, “a primeira fragrância do mundo criada com inteligência artificial”. E talvez, assim como eu, você tenha reagido com desconfiança sobre o real impacto desse slogan. Pois bem: a afirmação não só é justificada como até subestima o mérito da inteligência artificial.
O novo perfume foi desenvolvido pela inteligência artificial Philyra, que por sua vez é uma criação, anunciada em outubro do ano passado, da empresa de fragrâncias Symrise, sediada em Nova York, e da IBM Research. A Philyra trabalha da forma já consagrada para sistemas artificiais: ela analisa um vasto banco de dados de formulações – são quase 1,7 milhão de perfumes – e famílias de fragrâncias (frutada, oriental ou florada) e correlaciona com dados populacionais como faixa de idade, país e sexo para sugerir novas combinações focadas em públicos-alvo. No trabalho desenvolvido para O Boticário, o alvo eram os millennials, que compreende as pessoas nascidas nas décadas de 1980 e 90.
O desenvolvimento de uma fragrância depende de aproximadamente 1300 substâncias, que podem ser combinadas de forma praticamente infinita. Classicamente, essa tarefa fica a cargo de um especialista, e não é nem um pouco trivial, porque poucas combinações acabam se tornando agradáveis ao olfato. A experiência faz a perfeição. A inteligência artificial tem seu diferencial justamente na parte da experiência: ela é capaz de aprender os padrões que resultam em agradabilidade analisando um conjunto muito maior do que qualquer pessoa é capaz de avaliar, e de forma muito mais rápida. Então, ela é capaz de fazer sugestões nunca antes imaginadas. E sem sequer avaliar ela mesma a qualidade subjetiva das novas fragrâncias: quem de fato determina o sucesso da formulação é primeiro o especialista humano, e depois o próprio público consumidor. Curiosamente, um especialista bem treinado geralmente é capaz de imaginar o cheiro de uma fragrância apenas sabendo sua composição. De certa forma, é a mesma coisa que a Philyra faz.
A aplicação da Philyra não fica limitada a perfumes. A fabricante americana de temperos McCormick também está usando o serviço para desenvolver novos sabores. Sua nova linha de produtos “One” para temperar frango, carne suína e salsicha é baseada nesse trabalho.
Para além do desenvolvimento de essências, espera-se que o uso da inteligência artificial revolucione as ciências de materiais. Hoje em dia, qualquer nova combinação é desenvolvida de forma quase aleatória, cujas propriedades devem depois ser testadas em um laboratório, onde o sucesso fica dependendo em grande parte do acaso. É um processo dispendioso tanto em tempo quanto em recursos. As técnicas de machine learning podem melhorar muito esse processo, primeiro construindo a partir do conhecimento estabelecido, depois fazendo sugestões revolucionárias a partir de ingredientes que podem até ser hipotéticos. Os especialistas podem deixar essa tediosa primeira etapa a cargo da inteligência artificial, enquanto continuam responsáveis por filtrar as sugestões para o que for realista dada a aplicação desejada.
Para o projeto com O Boticário, a Symrise foi contratada com o objetivo de gerar três fragrâncias. Uma deveria ser completamente criada pela Philyra, outra deveria ser ajustada posteriormente por um especialista, e uma terceira onde as formulações criadas pela Philyra seriam consideradas como sugestões para que um especialista criasse sua própria. Esses produtos-teste foram avaliados de forma cega por um comitê d’O Boticário. E, surpreendentemente, a maioria do comitê escolheu como vencedora a fragrância gerada completamente pela Philyra. É esse o produto que está chegando ao mercado.
O slogan que captaria melhor a natureza do processo de desenvolvimento do Egeo seria, portanto:
“a primeira fragrância do mundo criada por inteligência artificial”. Um feito impressionante.