Estado da Inteligência Artificial 2020

Desde 2018, os investidores em inteligência artificial Nathan Benaich e Ian Hogarth, baseados em Londres, têm produzido um relatório anual chamado de Estado da IA (State of AI), onde eles descrevem como a inteligência artificial está se fazendo presente em várias áreas da sociedade, com o objetivo de informar as discussões sobre o assunto e suas implicações para o futuro. O relatório de 2020 acaba de ser publicado. Este artigo, seguindo as áreas apresentadas no documento, aponta as principais informações reportadas pelos autores.

Pesquisa

  • O relatório começa apontando que apenas 15% dos artigos publicados têm seu código divulgado, ou seja, a área não é tão aberta quanto parece ser.
  • Em deep learning, o PyTorch (Facebook) está ultrapassando o TensorFlow (Google) nos artigos, o que deve ser refletido no futuro também na produção.
  • Os modelos de linguagem ultrapassaram a barreira dos bilhões de parâmetros, tornando a empreitada restrita a grandes empresas devido aos altos custos envolvidos. O GPT-3, o modelo mais comentado do ano, tem 10 vezes mais parâmetros que o segundo lugar neste ranking. Modelos, datasets e capacidade computacional maiores ainda têm impacto direto no desempenho das tarefas, o que indica que esta tendência deve continuar. Por outro lado, estes ganhos de performance parecem estar chegando num platô quando se avalia os recursos utilizados para alcançá-los.
  • Modelos maiores precisam de menos dados para alcançar a mesma performance, o que beneficia áreas com poucos dados disponíveis, como línguas poucos utilizadas.
  • O desempenho humano no conjunto de datasets GLUE, que costuma ser usado como benchmark para tarefas de processamento de linguagem natural, já foi ultrapassado por vários modelos, de forma que um conjunto mais complexo, chamado SuperGLUE, está tomando seu lugar. Mesmo assim, os modelos mais recentes já se aproximam da linha de base neste novo benchmark.
  • O transformer tem se consolidado como uma poderosa estrutura de camada devido à sua alta capacidade de generalização. Primeiramente utilizado para processamento de linguagem natural, agora ele encontra aplicação também na visão computacional, sendo utilizado para detecção e segmentação de objetos.
  • A pesquisa em biologia tem se beneficiado da inteligência artificial, sendo que o número de publicações utilizando a tecnologia está aumentando mais que 50% todos os anos desde 2017.
  • Redes neurais com grafos têm demonstrado maior poder no processamento de dados onde as instâncias têm relações entre si, como no caso de moléculas, onde cada átomo é ligado a outros. Assim, foi possível, por exemplo, prospectar um novo antibiótico.
  • Os modelos de linguagem mostraram potencial para prever as propriedades de proteínas a partir da sequência de aminoácidos que as compõem. É como se os modelos estivessem entendendo a “linguagem da vida”.
  • No ano em que fomos afetados pela COVID-19, várias iniciativas estudaram a doença usando inteligência artificial. Um estudo amplo permitiu prever sintomas inéditos antes que a comunidade de saúde pública tomasse conhecimento deles.
  • Os veículos autônomos melhoraram seu desempenho pela incorporação de um modelo capaz de prever o que deve acontecer no futuro imediato, ao invés de apenas reagir ao que está acontecendo no momento.
  • Algumas pesquisas têm focado no desenvolvimento de modelos mais eficientes no consumo de recursos, o que é essencial para que possam ser utilizados em dispositivos móveis.
  • O emprego de grandes volumes de dados com informações pessoais tem feito aumentar a preocupação com privacidade. Em 2019, o número de publicações sobre aprendizagem federada, uma forma de proteger dados sensíveis, aumentou cerca de 5 vezes em relação ao ano anterior. Em 2020, este número foi ultrapassado já no primeiro semestre. Um projeto iniciado este ano está testando o treinamento de modelos em imagens médicas com preservação de privacidade, o que deve trazer benefícios para a área da saúde sem comprometer dados pessoais.

Talentos

  • As grandes empresas da área têm captado a maioria dos professores que antes estavam associados a alguma universidade. Isto parece estar afetando o empreendedorismo entre alunos de pós-graduação.
  • A Arábia Saudita inaugurou a primeira universidade exclusivamente para inteligência artificial.
  • Cerca de 30% das pesquisas em IA são feitas por pesquisadores educados na China. A maioria deles eventualmente se muda para os Estados Unidos, que se mostra um forte retentor de talentos.
  • A maioria dos melhores pesquisadores trabalhando nos Estados Unidos foi treinada em outros países.
  • Instituições e corporações americanas ainda são as principais produtoras de conhecimento na área.
  • O número de estudantes cursando disciplinas de inteligência artificial tem aumentado consistentemente desde 2010. Mesmo assim, a demanda no mercado ainda é cerca de 3 vezes maior que a oferta.
  • Este ano, a área também foi afetada pela pandemia do novo coronavírus, sendo que a demanda por profissionais caiu cerca de 65% a partir de março.

Indústria

  • Está iniciando no Japão a fase 1 do primeiro teste clínico de uma droga desenvolvida por IA, para o tratamento de transtorno obsessivo-compulsivo.
  • A indústria farmacêutica está demonstrando interesse em validar os resultados produzidos pela pesquisa baseada em IA.
  • Também na área de medicamentos está tomando forma a preocupação com privacidade, como se observa pelo lançamento do projeto MELLODY para treinamento de modelos.
  • O emprego de deep learning está mostrando um potencial até então desconhecido para a microscopia de alta resolução, importante por exemplo na geração de diagnósticos.
  • A integração de dados de natureza diversa permitiu a geração de um modelo capaz de prever os níveis de triglicerídeos no sangue, em função do alimento consumido, de forma individualizada, resultando no lançamento de um produto comercial voltado para pessoas com diabetes.
  • As principais publicações científicas lançaram regras específicas para protocolos e reportes de testes clínicos com o envolvimento de inteligência artificial, o que deve aumentar sua qualidade e transparência.
  • Pacientes que fizeram uso de um sistema de imageamento médico baseado em inteligência artificial para prevenir acidentes vasculares cerebrais receberam reembolso financeiro pela primeira vez, o que é um importante incentivo para a popularização do uso da tecnologia.
  • Apesar de já serem regulamentados na Califórnia, os carros autônomos ainda representam uma fração insignificante da frota.
  • Algumas empresas abandonando a área de veículos autônomos reportam que os custos com treinamento supervisionado têm se tornado proibitivos, o que mostra que novas abordagens são necessárias.
  • A maioria das grandes empresas no setor automotivo têm publicado seus datasets de forma pública para obter ajuda da comunidade no desenvolvimento de modelos.
  • Fabricantes de processadores estão desenvolvendo produtos específicos para inteligência artificial. A empresa Graphcore, por exemplo, lançou um processador que é cerca de 9 vezes mais rápido que sua versão anterior, reduzindo o custo de treinamento em cerca de 12 vezes. O Google lançou a quarta versão das TPUs, com ganho de performance de 4 vezes. A NVIDIA lançou GPUs até 2,5 vezes mais rápidas.
  • Empresas que empregam inteligência artificial reportam que a tecnologia tem permitido ganhos em vendas e marketing, ao mesmo tempo em que promove economia na administração da cadeia de insumos e das funções de produção.
  • Automação e visão computacional são as técnicas mais comumente empregadas pelas empresas; as áreas com menos aplicação são fala, produção de linguagem natural e robôs físicos.
  • Assistentes de diálogo, capazes de fazer reservas e coletar informações, já estão sendo empregados no Reino Unido.
  • Técnicas de processamento de linguagem natural têm sido usadas para quantificar a percepção pública sobre a responsabilidade ambiental, social e de governança das empresas.
  • A visão computacional está sendo empregada para identificar documentos falsificados através de alterações sutis, o que é importante já que a circulação de documentos em formato digital tem se tornado rotina.
  • A inteligência artificial tem sido aplicada para identificar situações de lavagem de dinheiro e financiamento de organizações terroristas.
  • Neste último ano, o Google incorporou o modelo de linguagem BERT à sua ferramenta de buscas, aumentando a capacidade de contextualização das pesquisas.
  • A área de processamento de linguagem natural está se beneficiando enormemente das bibliotecas e datasets publicados em formato open source. A biblioteca mais utilizada, Hugging Face, teve seu uso aumentado em quase 5 vezes este ano apenas.
  • O financiamento de empresas de inteligência artificial tem batido recordes sucessivos desde 2015. Este ano deve ver uma leve retração por causa da COVID-19, mas mesmo assim, os volumes devem ser similares aos do ano passado.

Política

  • O reconhecimento facial tem sido usado de forma cada vez mais rotineira. No Brasil, ele já está em uso ativo. Apesar de permitir o reconhecimento de criminosos, por exemplo, ainda são comuns os casos de falsos positivos, que podem resultar em condenações erradas.
  • No estado de Illinois, que tem as leis de privacidade biométrica mais restritivas dos Estados Unidos, o Facebook perdeu um processo por causa de seu algoritmo de reconhecimento facial para marcação automática de fotografias.
  • A empresa Clearview montou uma base de dados com mais de 3 bilhões de fotografias obtidas da internet, sendo cerca de 7 vezes maior do que a base do FBI. Ela agora vende acesso para as agências públicas.
  • Diante das preocupações públicas com privacidade, as grandes empresas estão adotando restrições sobre o acesso e uso das fotografias que estão sob sua tutela.
  • No estado de Washington, uma nova lei torna necessária a obtenção de um mandado para que agências governamentais possam usar ferramentas de reconhecimento facial.
  • Muitos corpos legislativos estão discutindo o uso indevido de deefakes, mas ainda não há um consenso sobre as regras. Outro tema em debate envolve como o Estado poderá utilizar a inteligência artificial em processos de decisão, como por exemplo na concessão de vistos.
  • O GPT-3, modelo mais poderoso de linguagem, ainda produz conteúdo preconceituoso. As empresas desenvolvendo modelos estão cada vez mais empenhadas em remover os vieses dos datasets em que eles são treinados.
  • Os Estados Unidos têm feito investimentos consistentes para o emprego militar de inteligência artificial.
  • Instituições públicas têm escrito suas próprias políticas para o desenvolvimento e uso responsável de inteligência artificial, que têm convergido para normas globais. Os temas recorrentes envolvem transparência, possibilidade de auditoria, robustez, segurança e equanimidade. As empresas também estão seguindo este caminho.
  • A chinesa Huawei foi este ano a primeira empresa a vender mais smartphones que a Samsung ou a Apple. Enquanto ela segue investindo pesado em inteligência artificial, vários países se mostram preocupados com seu potencial envolvimento com o governo chinês.
  • A China está investindo para diminuir sua dependência de semicondutores fabricados pelos Estados Unidos, o que deve diminuir o poder de veto do governo americano sobre as práticas chinesas.
  • Os governos estão se envolvendo cada vez mais para autorizar ou vetar a aquisição de startups de inteligência artificial.
  • Um ato bipartidário proposto nos Estados Unidos trata o domínio da inteligência artificial como uma corrida entre superpotências.
  • Vários países declaram possuírem estratégias nacionais para a inteligência artificial. O Brasil ainda está de fora desta lista.

Previsões

  • As empresas vão continuar desenvolvendo modelos de linguagem cada vez maiores.
  • As redes neurais baseadas em atenção vão invadir a visão computacional, produzindo resultados ainda melhores.
  • A China e a Europa seguirão a tendência americana de aumentar os investimentos em inteligência artificial para uso militar.
  • Devemos ver uma nova descoberta importante sobre biologia estrutural e medicamentos.
  • A visão computacional 3D deve alcançar novos patamares em realidade virtual e aumentada.

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